Combatendo o estigma

Campanha mundial: que a Associated Press passe a dizer “trabalhadora sexual”, e não “prostituta”

EJ Dickson, para o Daily Dot, tradução de Renato Martins.

Todos os anos, o Manual de Estilo da Associated Press, considerado o guia de estilo de referência para repórteres, editores e estudantes de jornalismo, pede sugestões de revisões e palavras novas para sua edição anual. Muitas dessas palavras novas são gírias e termos da cultura popular, como as adições recentes de “hashtag”, “swag” ou “selfie”. Mas algumas das sugestões vêm daqueles que pressionam pela atualização de termos ultrapassados ou politicamente incorretos. Exemplo: a campanha no Twitter para que os editores da Associated Press substituam a palavra “prostituta” por “trabalhadora sexual” em seu Manual de Estilo de 2015.

Para quem não pertence à comunidade do trabalho sexual, a distinção entre as duas expressões pode parecer desprezível, na melhor das hipóteses. Mas para muitas trabalhadoras sexuais e seus aliados, o fato de o Manual de Estilo da AP se referir às trabalhadoras sexuais como “prostitutas” é um símbolo de como a sociedade em geral marginaliza e estigmatiza quem trabalha na indústria do sexo.

“Palavras têm poder. Muitas pessoas que vendem serviços sexuais acham o termo ‘prostituta’ degradante e estigmatizador, inclusive os grupos liderados por trabalhadoras sexuais que a Open Society apoia”, disse ao Daily Dot Sebastian Kruger, executivo de comunicações da organização pelos direitos humanos Open Society Foundations.

“Como resultado disso, a palavra ‘prostituta’ pode contribuir para a exclusão das trabalhadoras sexuais de serviços legais, sociais e de saúde. As palavras que a Associated Press escolhe usar têm um alcance amplo e estabelecem um padrão que as pessoas no mundo todo acompanham.”

Mike Stabile, jornalista, diretor de filmes e ativista pela saúde sexual baseado em Los Angeles, diz que mudar de “prostituta” para “trabalhadora sexual” obrigará a grande imprensa a reconhecer o trabalho sexual como uma forma de trabalho como qualquer outra. Diferentemente da palavra “prostituta”, que pode ser usada tanto como substantivo como verbo (é comum os ativistas antitráfico de pessoas, por exemplo, referir-se às mulheres que vendem sexo na voz passiva, como em “mulheres prostituídas”), a expressão “trabalhadora sexual dá mais voz ativa às mulheres que atuam na indústria do sexo. Ele compara a diferença entre essas expressões à diferença entre “homossexual” e “gay”:

“Prostituta é uma palavra antiquada, mais útil para as autoridades policiais e para os ativistas da cruzada moral do que para as pessoas reais a quem pretende se referir”, diz Stabile.

O problema não é apenas que a palavra “prostituta seja arcaica e ofensiva: em muitos casos, ela não é nem mesmo precisa. Enquanto a expressão “trabalhadora sexual” pode ser usada para descrever mulheres que se engajam em formas legais de trabalho sexual, de atrizes de webcam a modelos que posam nuas a dominadoras profissionais e até dançarinas “exóticas”, a palavra “prostituta” se refere especificamente ao ato, frequentemente ilegal, de vender sexo por dinheiro. Kate D’Adamo, organizadora comunitária do Sex Worker Outreach Project de Nova York, diz que existe a necessidade de um termo que inclua todas as formas de trabalho sexual em sua variedade.

“As pessoas envolvidas no comércio sexual são uma população diversa, e as pessoas se identificam diferentemente. ‘Trabalhadora sexual’ é uma expressão muito mais inclusiva, que representa muitas das nuances do comércio sexual, e tem sua raiz na terminologia da autodeterminação”, diz D’Adamo. “‘Prostituta’ não apenas é uma palavra que frequentemente é ridicularizada, é um termo legal que sempre será associado a cometer um crime.”

Como muitas mulheres na indústria do sexo se engajam em formas legais de trabalho sexual, jogar esse grupo com as “prostitutas” é “lamentavelmente impreciso boa parte do tempo”, diz ela.

Se o Manual de Estilo da AP adotar a sugestão e trocar a palavra “prostituta” por “trabalhadora sexual” em sua próxima edição, que deverá ser publicada em junho, isso será “absolutamente um passo na direção certa” para reduzir o estigma que cerca o trabalho sexual, afirma D’Adamo.

Mas nem todos na comunidade concordam. A srta. R, por exemplo, que se descreve no Twitter como “trabalhadora em atividade”, diz preferir o termo “provedora” à expressão “trabalhadora sexual”, que é como a maioria das mulheres em comunidades como o agora extinto MyRedBook (fechado pelo FBI), descrevem a si mesmas. Ela se sente ofendida quando se referem a ela como “trabalhadora sexual”, e não como “trabalhadora”. “Existe uma necessidade de sexualizar e erotizar nossa existência”, diz R.

Caso a AP faça a mudança de “prostituta” para “trabalhadora sexual”, a srta. R tem dúvidas sobre se isso ajudará muito no avanço da causa dos direitos das trabalhadoras sexuais. Para as pessoas que realmente atuam em trabalho sexual e não apenas se apoiam no Manual de Estilo da AP para ajudá-las a escrever sobre isso, a maneira como a grande imprensa trata as trabalhadoras importa muito menos do que a maneira como elas chamam a si mesmas, e do que os rótulos que elas aplicam a seu próprio trabalho.

“Nós assumimos identidades e nos rotulamos a nós mesmas de acordo com o que nos faz sentir seguras em nossas vidas. Enfrentamos a criminalização e a discriminação, e navegamos [uma palavra que também é hostil para as trabalhadoras sexuais] de nosso próprio jeito único.” Apenas pessoas em posição privilegiada, diz a srta. R, podem se dar ao luxo de discutir picuinhas semânticas: “As trabalhadoras estão trabalhando, enquanto o discurso sobre semântica acontece principalmente sem nossa participação.”

No fim das contas, a srta. R não acha que as questões mais urgentes que afetam as trabalhadoras sexuais hoje tenham muito a ver com nomenclatura, como o estigma profundamente enraizado que certa o trabalho sexual como forma de trabalho. E ela não é otimista quanto à possibilidade de a Associated Press contribuir muito para mudar isso. “O Código Penal e a criminalização é que são o problema. As palavras usadas para nos manter oprimidas importam menos.”

Se você quer propor uma mudança para a próxima edição do Manual de Estilo da AP, pode visitar a página de sugestões para 2015 aqui. O prazo para sugestões se encerra em 31 de outubro.


Nota do tradutor: Aqui no Brasil, muitas ativistas preferem a expressão “trabalhadora sexual”, mas não há consenso. Gabriela Leite, coautora do projeto de legalização apresentado pelo deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ), dizia preferir a palavra “puta”. Betânia, uma das líderes da Associação Mulheres Guerreiras do Jardim Itatinga (Campinas-SP), deu a entender que tem a mesma posição.

Já aquelas que se opõem à legalização do trabalho sexual e à ampliação dos direitos da categoria são contra: é o caso das representantes da Marcha Mundial das Mulheres (que faz uma campanha global contrária à mudança de terminologia da AP) e suas aliadas da Pastoral da Mulher Marginalizada, da Igreja Católica. Essas são as forças por trás daquele malfadado documento do Coletivo de Mulheres da CUT contra a legalização, adotado em novembro de 2013. Leia o documento: ele sempre usa a palavra “prostituta”, e nunca a expressão “trabalhadora sexual”.

As palavras importam, sim, porque podem contribuir para aumentar ou para reduzir o estigma associado ao trabalho sexual. O melhor exemplo disso é a expressão “filho da puta”, usada para significar “tua origem é impura”.

Impura quem, cara-pálida?