Combatendo o estigma

Jogando bananas em atores e trabalhadoras sexuais

O jornal britânico The Guardian recusou-se a publicar o texto abaixo, de Renato Martins, em sua seção de comentários. Segundo o jornal, o texto estava “fora dos padrões”.

No artigo Legalizar o trabalho sexual significa gangbangs monetizadas e aprovadas pelo Estado (The Guardian, 30 de abril de 2014), Tanya Gold joga uma banana em Rupert Everett, o ator principal da minissérie Love for Sale, do Canal 4 da TV britânica.

Espero que ele pegue a banana e dê uma boa lambida antes de comê-la. Quem a senhora Gold pensa que é para decidir quais papéis um ator deve ou não aceitar? O sr. Everett, sobre quem eu não sei nada, foi suficientemente corajoso ao desempenhar o papel de um trabalhador sexual; quem, se não ele mesmo, pode dizer que ele deveria ou não atuar, no palco ou na tela, “com um colega colocando um pênis em sua boca, ou ânus, e dando-lhe dinheiro” (como a sra. Gold colocou, de forma “elegante”)?

E corajoso ele foi, ao aceitar desempenhar o papel de membro de uma das profissões mais estigmatizadas em todos os tempos. Quero dizer trabalhadores sexuais: prostitutas, atores pornôs, dançarinas “exóticas”, artistas de webcam, dominatrixes, etc.

Na opinião da sra. Gold, defender a legalização do trabalho sexual é uma atitude romântica, e também uma armadilha para liberais e para a esquerda. Sem motivo, ela nos lembra de uma experiência ruim de Christopher Hitchens em um bordel, onde ele conheceu uma “cadela gananciosa”, e também chama nossa atenção para os “falsos charmes” das prostitutas. Gente ruim, essas putas.

A sra. Gold também usa o fantasma das gangues do tráfico humano como argumento contra a legalização. Ao fazer isso, ela se junta aos muitos governos que usam a prostituição como cortina de fumaça para esconder o fracasso de suas políticas sobre imigração, prevenção às drogas e serviços sociais.

E então há os cafetões. Palavra feia, não é? Ela nos traz a imagem dos filmes americanos, de um negro de terno cor-de-rosa e um quilo de correntes de ouro no pescoço, extorquindo dinheiro das “cadelas” que têm o azar de trabalhar para ele.

Lembramos que muitos bordéis têm como donas ex-trabalhadoras sexuais que foram capazes de economizar dinheiro suficiente para montar seu próprio negócio. Elas vivem de uma parcela do dinheiro obtido pelas mulheres que trabalham em suas casas; isso é injusto? A parcela do dono frequentemente é injusta; mas isso não seria mais um argumento para a regulamentação do negócio?

Aqui no Brasil, o Congresso está debatendo um projeto do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) que legaliza a prostituição. Um dos artigos estabelece um teto para a parcela do dono do bordel.

E é claro, eu me lembro da sra. Soula Alevridou, uma dona de bordel em Larissa (Grécia), que em 2012 se tornou a principal patrocinadora do time de futebol local, o Voukefalas. Com a Grécia enfrentando uma enorme crise econômica, ela também doou dinheiro para as escolas locais, para que elas pudessem comprar livros. Não é muito sinistro, é?

A sra. Gold também menciona uma reportagem da Der Spiegel sobre os efeitos supostamente negativos da legalização na Alemanha, mas deixa de notar que a opressão das trabalhadoras sexuais naquele país não é muito diferente do que os trabalhadores de outras áreas, mais “respeitáveis”, têm de aguentar. O capitalismo é uma merda, não é mesmo? E não apenas para trabalhadoras sexuais.

E “na Suécia, por exemplo, onde o cliente é criminalizado, o comércio simplesmente se muda para outro lugar”. “Outro lugar”, sra. Gold, pode ser um bom lugar aos olhos da burguesia, mas está mais longe do alcance de serviços sociais e da proteção legal. Mover as trabalhadoras sexuais ainda mais para a clandestinidade contribui pouco, para dizer o mínimo, para reduzir o preconceito e o estigma.

E o que falar da Nova Zelândia, onde um tribunal recentemente deu uma indenização de US$ 20 mil a uma trabalhadora sexual como compensação por assédio sexual? O argumento vencedor dela foi o de que ela está lá para prover sexo pago aos clientes, não para dar sexo de graça para o dono do bordel. Uma decisão como essa só é possível onde o sexo é uma indústria legalizada.

A sra. Gold também veste o manto do feminismo ao mencionar os participantes misóginos dos fóruns de clientes. Cito outra escritora, Leanora Wolpe, uma estudante da Universidade de Oxford: “Essa ideia do trabalho sexual como degradante não cola para mim, porque, para todo o trabalho que foi feito para dar direitos e escolhas à mulher, algumas mulheres que se declaram orgulhosamente feministas envergonham e policiam corpos quando é o caso daquelas que trabalham nessa indústria. Essa versão do feminismo é mais do que um pouco desconfortável, porque as trabalhadoras sexuais são sistematicamente vitimizadas, criminalizadas e humilhadas por expressar sua sexualidade de uma maneira que não se conforma com a versão ‘aceitável’ de sexo que criamos em nossas cabeças. Nossa defesa contra ‘o homem’ proverbial que está aí para nos agarrar e nos trancar na cozinha cai aos pedaços no ponto em que é mais necessária. ‘Seu corpo não pertence a eles!’, elas gritam. Da última vez que eu olhei, ele também não pertence a vocês.” (Você pode ser feminista e trabalhadora sexual, em The Independent, 5 de agosto de 2013).

“Se ofereço acesso ao meu corpo em troca de aceitar instituições patriarcais, como o casamento, isso é aceitável para alguns. Para outros, é a minha disposição de reivindicar que o sexo com homens por pagamento é uma subversão ao patriarcado que é tão provocativa, e é por isso que eles submetem as trabalhadoras sexuais a tanto opróbrio”, escreveu Molli Desi Devadasi em seu blog.

A sra. Gold zomba do movimento das trabalhadoras sexuais ao mencionar “a utopia de prostitutas autoempregadas, pagando serenamente seus impostos”. As próprias trabalhadoras sexuais não veem sua realidade como utópica. Dê uma olhada em O direito de existir (eu, assim como você), um artigo escrito por minha amiga e coeditora Monique Prada, uma trabalhadora sexual brasileira.

Algumas prostitutas, como Monique e Molli Desi, carregam seus guarda-chuvas vermelhos com orgulho; outras batalham sob a carga de séculos de preconceito e estigma. O artigo da sra. Gold joga bananas em cada uma delas.