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Prostituição em tempos de feminismo

Por Amara Moira

a) Prostituição = estupro, uma vez que o consentimento da profissional seria obtido apenas mediante pagamento, crença que acaba por afirmar que toda mulher tem um preço e que, por conta disso, faz-se necessário proibir a simples possibilidade desse serviço existir [perspectiva do feminismo radical]

OU

b) Prostituição = trabalho, uma vez que sua prática encapsula um saber sexual, um saber do corpo, do desejo, e que, assim sendo, é justo se cobrar por ele [perspectiva do movimento de prostitutas]

O risco das narrativas únicas. Quem viveu a prostituição há vinte, trinta anos atrás, quando o Estado abertamente violentava prostitutas com o aval das leis antivadiagem, sabe a diferença que é exercer a atividade hoje em dia e pode imaginar o que será exercê-la daqui a algumas décadas. A sociedade vai mudando, o papel da mulher também, e não há como negar que, à medida que a desigualdade de gênero diminua, os sentidos que orbitam ao redor da palavra prostituição também mudem. Temos uma mulher na presidência da República, cada vez mais vemos mulheres protagonistas dos movimentos sociais, lutando por seus direitos, por melhores condições de trabalho, por melhor remuneração. Mulheres, incluindo aí prostitutas, travestis.

Mas eis um saber sobre o qual não se pode, ou não se deveria, cobrar, não à toa uma profissão eminentemente feminina (mais uma para o rol das ocupações femininas que devem permanecer sem remuneração, como p.ex. a de dona de casa). Prostituição: opção apenas quando não há opções (e, ainda assim, dá-lhe estigma, violência e culpabilização pra cima dessa mulher), daí o horror geral que angariam as figuras que escolhem se prostituir, que gostam disso que fazem. É como se a realidade da prostituição fosse uma única e como se ela só pudesse continuar existindo dessa maneira, na pura precariedade. Falar de prostituição em outros termos que não esse é correr o risco de ser acusada de glamurizar, romantizar a prostituição. Lutar por melhores condições, por melhor remuneração? Não se deve fazer isso, pois pode estimular mais mulheres a recorrerem a esse trabalho, a acreditar que ele faz sentido.

A luta de trabalhadoras e trabalhadores fez com que toda uma gama de profissões conseguisse o direito de ganhar, por exemplo, adicional noturno, de periculosidade ou de insalubridade, em nenhum momento esses movimentos propondo, pelos riscos implicados nelas, a extinção dessas profissões. Mas com a prostituição a conversa é outra. Para esse feminismo radical, sexo é coisa tão perigosa, tão violenta, principalmente esse que envolve pênis e penetração, que se faz forçoso lutar para que a incidência da prática diminua e/ou fique restrita apenas a relacionamentos afetivos. É impensável imaginá-lo em termos dum saber, imaginar que temos o direito de aprender esse saber, assim como de cobrar por ele (ainda vão descobrir, aliás, que cresce o número de mulheres que pagam por sexo, mulheres clientes, mas aí duvido que chamem esse serviço de estupro, porque mulheres são sempre vítimas, não importa o que façam).

Quando querem abolir a prostituição, querem ao mesmo tempo nos obrigar a transar de graça, nos obrigar a abrir mão do valor que esse saber assume em nossa sociedade, independente do que esse trabalho signifique para nós. Sexo, por mais incontornável que seja enquanto experiência humana, não é tão facilmente obtível, não aquele que se deseja, e prova disso são os tantos homens casados que nos procuram atrás de realizar suas fantasias inconfessáveis, fio-terra, beijo grego, cintaralho e por aí vai, além dos tantos homens que não teriam acesso a qualquer experiência sexual não fosse por profissionais do sexo. Como diz Georgina Orellano, liderança do movimento argentino de prostitutas, “se não posso cobrar por sexo, essa não é minha revolução”. Chega de falarem por nós, chega de decidirem por nós o que devemos ou não fazer dos nossos corpos, com nossos saberes.


Amara Moira é travesti pan puta, feminista antes de mais nada, e escritora dessas de batom na boca e sem papas na língua. Militante dos direitos de LGBTs e de profissionais do sexo, no tempo que sobra ainda faz doutorado em teoria literária pela Unicamp, para o desespero do patriarcado.

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