Combatendo o estigma

Um guia para que jornalistas e escritores tratem trabalhadoras sexuais com respeito

Jornalistas e escritores que escrevem sobre trabalhadoras sexuais provocam danos duradouros a suas fontes de informação ao tratar o trabalho sexual como uma área de exceção para sua ética jornalística, escrevem Marlise Richter, Ntokozo Yingwana, Lesego Tlhwale e Ruvimbo Tenga para o OpenDemocracy.

A imprensa sul-africana, assim como suas contrapartes internacionais, frequentemente é culpada de representar o trabalho sexual e as trabalhadoras sexuais de forma enganosa. A maioria das matérias sobre trabalho sexual é de natureza sensacionalista e enfatiza os aspectos de obscenidade e safadeza, ao invés dos aspectos mais mundanos do trabalho sexual. Poucos jornalistas ou escritores se dão ao trabalho de entrevistar trabalhadoras sexuais ou de pedir a opinião delas para artigos e investigações, ao mesmo tempo que privilegiam as vozes de autoridades, moradores ou do público em geral. Embarcar na tarefa frequentemente difícil de localizar trabalhadoras sexuais, ganhar sua confiança e entrevistá-las de maneira respeitosa não é algo que caracteriza os escritos mais populares sobre o trabalho sexual.

Os autores deste artigo trabalham para organizações não-governamentais na África do Sul que atuam em favor dos direitos das trabalhadoras sexuais, e especificamente pela descriminalização do trabalho sexual. Em nosso trabalho, encontramos práticas jornalísticas perigosas e comportamento aético por parte de jornalistas, escritores, editores e pesquisadores. Somos parte de um consórcio de organizações que compilou uma fonte de recursos para jornalistas e escritores intitulado Trabalhadoras Sexuais e Trabalho Sexual na África do Sul – um Guia Para Jornalistas e Escritores. Este artigo resume algumas das principais questões que o guia contém. Além disso, ilustramos, com um estudo de caso de um jornal tabloide sul-africano, algumas das armadilhas em que a reportagem popular sobre trabalho sexual cai.

Estudo de caso: a cobertura do Everyday News sobre trabalho sexual e HIV

(Nota dos autores: os nomes do jornal e da trabalhadora sexual foram mudados, para evitar uma possível revitimização das reclamantes.)

Em maio de 2014, três jornalistas do Everyday News abordaram Angel, uma trabalhadora sexual no assentamento informal de Blikkiesdorp, no oeste da Província do Cabo, para entrevistas. Angel concordou em ser entrevistada, desde que sua fotografia não fosse publicada e que um pseudônimo fosse usado. Sua família não sabia que ela é trabalhadora sexual e que ela é portadora de HIV. Angel também contou aos jornalistas que não queria que fossem revelados os detalhes de um estupro coletivo que ela havia sofrido .

Em 17 de junho de 2014, o Everyday News publicou uma reportagem de duas páginas intitulada “Aids em Blikkiesdorp”, com o subtítulo “Prostitutas vivendo com HIV estão aumentando”. A reportagem incluía uma foto de Angel de pé na rua, vista de trás, mas não nublada como havia sido combinado antes da entrevista. Angel podia, portanto, ser identificada por membros da comunidade, e, portanto, vinculada ao fato de ser uma trabalhadora sexual e ao fato de ter HIV. A reportagem também incluía o fato de Angel ter sido estuprada.

Angel procurou a Força-Tarefa de Educação e Defesa das Trabalhadoras Sexuais (Sweat) e o Centro Legal da Mulher (WLC), em busca de assistência. Essas organizações entraram com uma reclamação junto ao Ombudsman da Imprensa, detalhando o rompimento do contrato verbal e as implicações sociais das ações do jornal.

O Código de Imprensa da África do Sul determina que a identidade de vítimas de estupro não será revelada sem o consentimento delas, assim como o status de uma pessoa no que se refere ao HIV. Desde a publicação daquela reportagem, Angel teme sair de casa, por causa da ameaça de violência por parte de membros da comunidade. Isso colocou sua saúde em risco, já que ela já não vai à clínica local para receber seus medicamentos antirretrovirais.

O Código é claro ao dizer que “títulos e legendas de fotos deverão refletir de maneira razoável o conteúdo da reportagem ou da imagem em questão”. O conteúdo da reportagem não dava nenhuma evidência de que o número de trabalhadoras sexuais com HIV estivesse crescendo, como o subtítulo sugeria. A imprensa também tem a obrigação de proteger suas fontes e de não publicar informações que constituam uma violação da confiança, que foi claramente violada neste caso.

O Ombudsman da Imprensa concordou com a análise do WLC sobre esse caso e instruiu o Everyday News a publicar um pedido de desculpas. Em 21 de agosto, o Everyday News publicou o seguinte:

“Em 17 de junho, o Everyday News publicou uma reportagem intitulada ‘Sexo e Aids em Blikkiesdorp’. A reportagem incluía informações que indiretamente tornavam possível identificar as reclamantes mencionadas na reportagem. Além disso, a cooperação das reclamantes estava condicionada à sua anonimidade. Devido ao que foi mencionado acima, o Everyday New gostaria de pedir desculpas às pessoas mencionadas na reportagem e à comunidade de Blikkiesdorp, em respeito ao dano que a reportagem pode ter causado às reclamantes. O Everyday News aproveita esta oportunidade para reafirmar que HIV/Aids continuam a ser uma questão sensível na comunidade e que deveria ser mantido respeito por pessoas vulneráveis como mulheres e crianças ao reportar sobre essa questão.”

Lamentavelmente, esse pedido de desculpas não desfaz o dano à dignidade e ao bem-estar de Angel. A publicação de sua identidade, ao lado de informações sensíveis sobre sua saúde, provavelmente terão consequências negativas de longo prazo para Angel e para sua reputação. Esse resultado poderia ter sido evitado, se os jornalistas do Everyday News tivessem aderido às condições combinadas antes das entrevistas.

A confiança entre trabalhadoras sexuais e jornalistas é vital para assegurar um trabalho de reportagem respeitoso e justo. Esse exemplo de má conduta profissional mostra o oposto: como uma prática jornalística ruim aumenta a desconfiança e a relutância das trabalhadoras sexuais em se relacionar com jornalistas.

Clichês visuais perpetuam estereótipos

Quando se faz uma pesquisa de imagens na internet com as palavras-chaves “trabalhadora sexual” ou “prostituta”, a maioria das imagens se relaciona a determinadas partes do corpo de mulher – seios expostos, bundas ou pernas – assim como as imagens abaixo. Essas imagens reduzem as trabalhadoras sexuais a determinadas partes do corpo, apenas. Elas deixam de retratar a multiplicidade e a complexidade das vidas das trabalhadoras sexuais e reforçam os estereótipos negativos de que trabalhadoras sexuais são alcoólatras e viciadas em drogas sedentas por dinheiro. Jornalistas responsáveis evitariam a reprodução de imagens como essas, à medida que elas encorajam a intolerância com as trabalhadoras sexuais e as reduzem a estereótipos.

Esq: Telegraph.co.uk; dir: Mpumalanganews.co.za.

Proteger as identidades de trabalhadoras sexuais

Especialmente num contexto no qual o trabalho sexual é criminalizado, as trabalhadoras sexuais frequentemente relutam em ter seus rostos fotografados ou filmados, já que isso pode expô-las a uma variedade de riscos. Há várias técnicas jornalísticas bem estabelecidas que podem disfarçar a identidade das trabalhadoras sexuais, como nublar seus rostos ou distorcer suas vozes se elas estão sendo filmadas. Essas opções deveriam ser discutidas com a/o entrevistada/o, para para estabelecer o que ela/ele prefere. O consentimento apropriado deveria ser obtido, de preferência na forma de um acordo por escrito, com cópias assinadas tanto para o entrevistador como para a entrevistada.

Exemplos bem sucedidos de ocultação de identidades

Amos Phago, produtor do programa Special Assignment, entrevista trabalhadoras sexuais para o episódio “Sobrevivendo às Ruas”, levado ao ar em fevereiro de 2013.

Conclusão

Uma boa parte do dano causado por reportagens impertinentes e sensacionalistas sobre trabalho sexual poderia ser evitada se os jornalistas desafiassem suas próprias ideias preconcebidas sobre trabalhadoras sexuais como pessoas que não merecem sua humanidade e dignidade. Princípios e orientações comuns à ética jornalística – precisão, objetividade, liberdade de preconceitos, integridade e respeito – também se aplicam ao trabalho sexual. De fato, à luz de sua posição marginalizada na sociedade, as trabalhadoras sexuais merecem de jornalistas, editores e escritores a maior das considerações por sua segurança, bem-estar e reputação.


Sobre os autores

Marlise Richter é dirigente do Sonker Gender Justice, uma ONG baseada na África do Sul que trabalha em toda a África para dar apoio a homens e garotos na promoção da igualdade de gêneros, na prevenção de violência doméstica e sexual e na redução do alastramento e do impacto do HIV e da Aids.

Lesego Tlhwale trabalha na Força-Tarefa de Educação e Defesa das Trabalhadoras Sexuais (Sweat), uma organização sediada na Cidade do Cabo que trabalha na advocacia, na defesa dos direitos humanos e na mobilização das trabalhadoras sexuais na África.

Ntokozo Yingwana trabalha na Rede Global de Projetos sobre Trabalho Sexual (NSWP).

Ruvimbo Tenga trabalha no Movimento Nacional das Trabalhadoras Sexuais Sisonke e na Sweat.